Fonte: PIAGET, Jean. Psicologia e epistemologia: Por uma teoria do conhecimento. Rio de Janeiro: Forense, 1973. pág. 7-16, capítulo 1.
Fragmento de:
EPISTEMOLOGIA GENÉTICA
1. Introdução
As teorias clássicas do conhecimento foram as primeiras a formular a pergunta
"Como é possível o conhecimento?", que logo se desdobrou numa
pluralidade de problemas, referentes à natureza e às condições preliminares
do conhecimento lógico-matemático, do conhecimento experimental de tipo físico,
etc. Mas o postulado comum das diversas epistemologias tradicionais é que o
conhecimento é fato e não processo e que, se nossas diversas formas de
conhecimento são sempre incompletas e as diversas ciências ainda imperfeitas,
o que se adquire e pode, pois, ser estudado estaticamente donde a posição
absoluta dos problemas "que é o conhecimento?" ou "como os
diversos tipos de conhecimento são possíveis?"
As razões de tal atitude, que se colocava de repente sub specie aeternitatis, não
são apenas encontráveis nas doutrinas particulares dos grandes filósofos que
fundaram a teoria do conhecimento: no realismo transcendente de Platão ou na
crença aristotélica em formas imanentes, mas também permanentes, nas idéias
inatas de Descartes ou na harmonia preestabelecida de Leibniz, nos quadros a
priori de Kant ou mesmo no postulado de Hegel que, ao descobrir o vir a ser e a
história nas produções sociais da humanidade, queria os redutíveis à
dedutibilidade integral de uma dialética dos conceitos. Acrescente-se a isso
tudo que o próprio pensamento científico acreditou, por muito tempo, atingir
um conjunto de verdades definitivas, embora incompletas e permitindo, assim, que
se perguntasse uma vez por todas o que é o conhecimento: os matemáticos,
variando de opinião sobre a natureza dos "seres" matemáticos,
permaneceram, até há pouco tempo, impermeáveis às idéias de revisão e de
reorganização reflexiva; a lógica foi por muito tempo considerada concluída
e foi preciso esperar os teoremas de Goedel para obrigá-la a reexaminar os
limites de seus poderes; a física, após as vitórias newtonianas, acreditou até
o início deste século no caráter absoluto de importante número de princípios;
mesmo ciências tão jovens como a sociologia ou a psicologia se não puderam
vangloriar-se de um saber sólido, não hesitaram até recentemente em atribuir
aos seres humanos e, portanto, aos sujeitos pensantes que estudavam, uma "lógica
natural" imutável, como o queria Comte (apesar da sua lei dos três
estados e ao insistir em seus processos comuns e constantes de raciocínio) ou
instrumentos invariáveis de conhecimento.
Entretanto, sob a influência convergente de uma série de fatores, passa-se
cada vez mais, hoje em dia, a considerar o conhecimento como um processo, mais
que como estado. A razão se deve em parte à epistemologia dos filósofos das
ciências: o probabilismo de Cournot e seus estudos comparativos dos diversos
tipos de noções já anunciam tal revisão; os trabalhos histórico-críticos,
expondo as oposições entre os diversos tipos de pensamento científicos,
favoreceram notavelmente essa evolução e a obra de L. Brunschvicg, por
exemplo, marca uma guinada importante na direção de uma doutrina do
conhecimento futuro. Entre os neo-kantianos, encontram-se em Natorp declarações
desta espécie: para proceder "como Kant, parte-se da existência de fato
da ciência e procura-se-lhe o fundamento. Qual é pois, este fato, uma vez que
se sabe que a ciência evolui sem cessar? A progressão, o método é tudo...
Por conseguinte, o fato da ciência não pode ser compreendida senão como um
fieri. Apenas este fieri é o fato. Todo ser (ou objeto) que a ciência tenta
fixar deve-se dissolver de novo na corrente do vir a ser. É deste vir a ser, e
só dele, que se tem o direito de dizer, em último lugar: "é (um
fato)". O que se pode e deve então procurar é a lei deste processo"
[nota de rodapé: P. NATORP, Die logischen Grundlagen der exakten Wissenschaften,1910,
págs. 14-15]. Conhece-se bem, por outro lado, o belo livro de Th. S. Kuhn,
sobre as revoluções científicas" [nota de rodapé: TH. S. KUHN, The
Structure of the Scientific Revolutions, Chicago e Londres (Phoenix Books, 1ª
ed.,1962)].
Se, porém, os epistemologistas puderam chegar a declarações tão claras, é
que toda evolução das ciências contemporâneas os conduziu: a elas e isso
tanto nos domínios dedutivos quanto nos experimentais. Ao comparar, por
exemplo, os trabalhos dos lógicos de hoje às demonstrações com as quais se
contentavam os que já se denominam "os grandes antepassados", como
Whitehead e B. Russel, não se pode deixar de ficar impressionado com a
espantosa transformação das noções, assim como com o próprio rigor dos
raciocínios.
Os trabalhos atuais dos matemáticos que, por abstração "reflexiva"
extraem operações novas de operações já conhecidas ou estruturas novas da
comparação de estruturas anteriores, chegam a enriquecer as noções mais
fundamentais, sem para isso contradizê-las, mas reorganizando-as de maneira
imprevista. Em física, sabe-se perfeitamente que cada princípio antigo mudou
de forma e de conteúdo, de modo que as leis melhor estabelecidas se tornam
relativas a uma determinada escala e mudam de significado, mudando de situação
no conjunto do sistema. Em biologia, em que a exatidão não atinge o mesmo grau
e em que imensos problemas ainda permanecem sem solução, as mudanças de
perspectiva também são impressionantes.
Recorde-se, além disso, que, em função mesmo de tais mudanças, que às vezes
não acontecem sem ser acompanhadas de crises e que obrigam pelo menos, e em
todos os casos, a um trabalho constante de reorganização reflexiva, a
epistemologia do pensamento científico tornou-se cada vez mais caso dos próprios
eruditos: os problemas de "fundamento" estão assim cada vez mais
incorporados ao sistema de cada ciência considerada: em física, como em matemática
ou em lógica.
2. Epistemologia e psicologia
Essa transformação fundamental do conhecimento-estado em conhecimento-processo
leva então a colocar em termos bastante novos a questão das relações entre
epistemologia e desenvolvimento ou mesmo formação psicológica das nações e
operações. Na história das epistemologias clássicas, apenas as correntes
empiristas recorreram à psicologia, por motivos fáceis de imaginar, embora não
expliquem nem o pouco cuidado de verificação psicológica nas outras escolas,
nem a psicologia muito sumária, com a qual o próprio empirismo se contentou.
Essas razões são, naturalmente, que, se se quiser abranger o conjunto dos
conhecimentos apenas pela "experiência", não se pode justificar tal
tese senão procurando analisar o que é experiência e acaba-se então por
recorrer às percepções, às associações e aos hábitos, que são processos
psicológicos. Mas como as filosofias empiristas e sensualistas, etc., nasceram
bem antes da psicologia experimental, contentamo-nos com essas noções de senso
comum e de descrição principalmente especulativa, o que impediu que se visse
que a experiência é sempre assimilação a estruturas e que se entregasse a um
estudo sistemático do ipse intellectus.
Quanto às epistemologias platônicas, racionalistas ou aprioristas, cada qual
acreditou ter encontrado um instrumento fundamental de conhecimento estranho,
superior ou anterior à experiência. Mas, em seguida a um esquecimento que se
explica, sem dúvida, também, pelas tendências especulativas e pelo desprezo
da verificação efetiva, essas doutrinas tiveram o cuidado de caracterizar as
propriedades que atribuíram a esse instrumento (a reminiscência das Idéias, o
poder universal da Razão ou o caráter, ao mesmo tempo, preliminar e necessário
das formas a priori), deixaram de verificar que estava realmente à disposição
do sujeito. Entretanto, existe aqui, quer se queira, quer não, uma questão de
fato. No caso da reminiscência platônica ou da Razão universal, essa questão
é relativamente simples: é evidente que, antes de conferir tais
"faculdades" a "todos" os seres humanos normais, conviria
examiná-los e este exame leva, rapidamente, a destacar as dificuldades da hipótese.
No caso das formas a priori, a análise dos fatos é mais delicada, pois não
basta analisar a consciência dos sujeitos, mas suas condições preliminares e,
por hipótese, o próprio psicólogo que quisesse estudá-los, os utilizaria a título
de condições preliminares de sua pesquisa. Mas ainda resta a história, em
suas múltiplas dimensões (história das ciências, sociogênese e psicogênese)
e, se a hipótese é verdadeira, deve verificar-se não pela introspecção dos
sujeitos, mas pelo exame dos resultados de seu trabalho intelectual: entretanto,
esse exame mostra, com provas, que é indispensável dissociar o preliminar e o
necessário, pois se todo conhecimento e sobretudo toda experiência supõe
condições preliminares, não apresentam nenhum repente de necessidade lógica
ou intrínseca e se várias formas de conhecimento conduzem à necessidade, esta
se situa no final e não no início.
Em resumo, todas as epistemologias, mesmo antiempiristas, suscitam questões de
fato e adotam assim posições psicológicas implícitas, mas sem verificação
efetiva, enquanto esta se impõe com método certo. Entretanto, se o que
adiantamos assim já é verdade no que se refere às epistemologias estáticas,
o mesmo sucede a fortiori para as teorias do conhecimento-processo. Realmente,
se todo conhecimento é sempre vir a ser e consiste em passar de um conhecimento
menor para um estado mais completo e mais eficaz, é claro que se trata de
conhecer esse vir a ser e de analisa-lo da maneira mais exata possível.
Entretanto, esse vir a ser não decorre do acaso, mas constitui um
desenvolvimento e como não existe, em nenhum domínio cognitivo, começo
absoluto até o desenvolvimento, este mesmo deve ser examinado desde os estágios
denominados de formação; é verdade que essa última, que ainda consiste,
pois, num desenvolvimento a partir de condições anteriores (conhecidas ou
desconhecidas), existe o risco de regressão sem fim (isto é, de um apelo à
biologia): apenas como o problema é o da lei do processo e como os estágios
finais (isto é, atualmente finais) são tão importantes sob este aspecto
quanto os primeiros conhecidos, o setor de desenvolvimento considerado pode
permitir soluções pelo menos parciais, com a condição, porém, de assegurar
uma colaboração da análise histórico-crítica com a análise psicogenética.
O primeiro objetivo que a epistemologia genética persegue é, pois, por assim
dizer, de levar a psicologia a sério e fornecer verificações em todas as
questões de fato que cada epistemologia suscita necessariamente, mas
substituindo a psicologia especulativa ou implícita, com a qual em geral se
contentam, por meio de análises controláveis (portanto, do modo científico
que se denomina controle). Entretanto, repetimo-lo, se essa obrigação tivesse
sido sempre respeitada, ter-se-ia tornado cada vez mais urgente hoje em dia.
Realmente, é impressionante verificar que as transformações mais
espetaculares das noções ou estruturas, na evolução das ciências contemporâneas
correspondem, quando se estuda a psicogênese dessas mesmas noções ou
estruturas, a circunstâncias ou características que explicam a possibilidade
de suas transformações posteriores.
Veremos exemplos disso a propósito da revisão da noção de tempo absoluto,
uma vez que desde o início a duração é conhecida em relação à velocidade
ou na evolução da geometria, já que desde os estágios iniciais as intuições
topológicas precedem toda a métrica, etc. Antes, porém, convém ainda
precisar os métodos da epistemologia genética.
3. Métodos
Epistemologia é a teoria do conhecimento válida e, mesmo que esse conhecimento
não seja jamais um estado e constitua sempre um processo, esse processo é
essencialmente a passagem de uma validade menor para uma validade superior.
Resultado disso é que a epistemologia é necessariamente de natureza
interdisciplinar, uma vez que tal processo suscita, ao mesmo tempo, questões de
fato e de validade. Se se tratasse apenas de validade, a epistemologia se
confundiria com a lógica: o problema, entretanto, não é puramente formal, mas
chega a determinar como o conhecimento atinge o real, portanto quais as relações
entre o sujeito e o objeto; Se se tratasse apenas de fatos, a epistemologia se
reduziria a uma psicologia das funções cognitivas e esta não é competente
para resolver as questões de validade. A primeira regra da epistemologia genética
é, pois, uma regra de colaboração: sendo o problema o de estudar como
aumentam os conhecimentos, temos então, em cada questão particular, de fazer
cooperar psicólogos que estudam o desenvolvimento como tal, lógicos que
formalizam as etapas ou estados de equilíbrio momentâneo deste desenvolvimento
e especialistas da ciência, que se dedicam ao domínio considerado;
acrescentar-se-ão, naturalmente, matemáticos que asseguram a ligação entre a
lógica e o domínio em questão e especialistas em cibernética que garantem a
ligação entre a psicologia e a lógica. É em função, pois, mas apenas em
função, dessa colaboração, que as exigências de fato e de validade poderão,
umas como outras, ser respeitadas.
Para compreender o sentido desta colaboração, é preciso lembrar a circunstância,
muitas vezes esquecida que, se a psicologia não tem competência alguma para
prescrever normas de validade, estuda sujeitos que, em todas as idades (da mais
tenra infância à idade adulta e até diversos níveis do pensamento científico)
impõem tais normas a si mesmos. Por exemplo, uma criança de 5-6 anos ignora
ainda a transitividade e se recusará a concluir que A < C se viu A < B e
B < C, mas não percebeu o conjunto Á e C. Assim, se se derrama uma
quantidade de liquido A de um copo baixo e largo num copo alto e delgado, em que
tomará a forma A’, ela se recusará a admitir que a quantidade A se conservou
em A’, mas aceitará que se trata da "mesma água": reconhece, pois,
a identidade qualitativa, mas rejeita a conservação quantitativa. Aos 7 ou 8
anos, considerará, ao contrário, como necessárias, ao mesmo tempo a
transitividade e a conservação quantitativa. O sujeito corno tal (isto é,
independentemente do psicólogo) reconhece, pois, normas. Donde então vários
problemas:
1. Como chegou o sujeito a se impor tais normas? Aqui é essencialmente uma
questão de psicologia, independentemente de toda competência (que a psicologia
não tem, aliás) quanto à avaliação do alcance cognitivo destas normas; é o
caso, por exemplo, do psicólogo determinar se essas normas simplesmente foram
transmitidas pelo adulto à criança (o que não é o caso), se provêm
unicamente da experiência (o que não basta, absolutamente, na verdade), se
resultam da linguagem, e de simples construções semióticas ou simbólicas
embora, ao mesmo tempo, sintáticas e semânticas (o que é novamente
insuficiente) ou se constituem o produto de uma estruturação em parte endógena
e que procede por equilibrações ou auto-regulações progressivas (o que é o
caso, desta vez).
2. Em seguida, há o problema da validade destas normas; torna-se então tarefa
do lógico formalizar as estruturas próprias às etapas sucessivas; as
estruturas pré-operatórias (sem reversibilidade, transitividade, nem conservações,
mas com identidades qualitativas e funções orientadas igualmente qualitativas,
que a elas duas correspondem tipos de "categorias", no sentido de Mac
Lane, mas muito elementares e triviais) ou as estruturas operatórias (com
caracteres de "grupo" ou de grupóide"). Cabe, pois, ao lógico
determinar o valor destas normas e os caracteres de progresso epistêmico ou de
regressão que os desenvolvimentos cognitivos estudados pelo psicólogo
apresentarão.
3. Finalmente, há a questão do interesse ou da ausência de significado dos
resultados obtidos para o domínio científico considerado. Lembraremos sempre,
a esse respeito, o prazer que Einstein experimentou em Princeton, quando lhe
contamos fatos de não conservação da quantidade de líquido, quando de um
transvasamento, com crianças de 4-6 anos e como achou sugestivo o caráter
tardio dessas conservações quantitativas. Efetivamente, se essas noções mais
elementares e, na aparência, mais evidentes, supõem uma longa e difícil
elaboração, compreende-se melhor o atraso sistemático, na história, da
constituição das ciências experimentais, comparadas às disciplinas puramente
lógico-matemáticas.
(...)
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