INQUISIÇÕES: PERPLEXIDADE E INDIGNAÇÃO...

 

Marlene Lucia Siebert Sapelli[1]

 


 

Há muito tempo sinto-me provocada  a pesquisar  a respeito da Inquisição ou, como melhor posso referir-me agora INQUISIÇÕES, para encontrar algumas respostas. Na verdade, são dois os fatos que me levaram à pesquisa: o fato de ter tido uma formação religiosa católica apostólica romana rigorosa ( e ter convivido na adolescência nos bastidores de instituições que a expressavam) e tê-la negado tornando-me ateísta e, recentemente , por um fato pitoresco de um aluno, que ao escolher esta temática para construir sua monografia, logo depois das primeiras buscas e leituras, tê-la abandonado por sentir-se incomodado ( pelas “coisas estranhas” que aconteceram em sua casa) pelo espírito da Inquisição. Ora, se o fato de procurar compreender melhor o perverso e monstruoso processo inquisitório a que foram submetidas milhares de pessoas[2], durante séculos, já causa arrepios, imagine-se o “poder”  que exercia sobre os homens de cada época e de cada lugar onde ela se implementou.

 

Ao iniciar a pesquisa fui surpreendida pela enorme  abrangência tanto temporal como espacial das Inquisições e até pela proximidade e atualidade do seu caráter perverso e controlador.Não tenho a intenção de redigir uma monografia sobre a temática em questão, portanto não farei um recorte específico mas empenharei esforços em compreender , pelo menos, os atos determinantes e principais, especialmente na Europa. Haverá três momentos de aprofundamento na revisão da cronologia histórica das Inquisições: 1376 – momento da elaboração do Manual dos Inquisidores ( com uma análise da obra); 1483 – nomeação de um dos inquisidores mais perversos : Tomás de Torquemada ( com a apresentação da sua biografia) e 1564 – publicação do INDEX - Librorum Prohibitorum  - ( com a indicação de alguns nomes referenciados nele).

 

Vou empenhar um esforço enorme em despir-me do “olhar voltairiano”em relação às instituições feudais ( neste caso a Igreja) que nesta visão eram consideradas inimigas da sociedade e  a Idade Média como época de opressão, obscurantismo, de tirania e rapinagem[3] e apresenta-la como Guizot, nem defendendo, nem atacando-a mas compreendendo o papel que ela desempenhou. Não posso dar garantias que o farei até o final visto ser o sentimento de Voltaire também um sentimento pessoal em relação à Igreja que teve papel também decisivo na minha constituição como “sujeito concreto”.

 

Para compreender as Inquisições da Idade Média é preciso buscar já nos primeiros séculos seu entendimento. No século III o império romano enfrentava vários problemas associados às questões econômicas, às guerras e  à moral e lutava dramaticamente para manter-se material e culturalmente. Neste processo de crise o aspecto religioso[4] assume importância fundamental.

 

            No decorrer do século IV o mundo tardo antigo romano vivencia um conjunto de profundas e importantes transformações que modificam substancialmente as estruturas sociais, econômicas, políticas, religiosas e mentais clássicas, fazendo surgir outras que resistimos a chamar de medievais e que caracterizam o momento histórico que denominamos de Antiguidade Tardia.

            Dentro dessas mudanças, as transformações ocorridas na religiosidade e no universo mental dos homens do mundo tardo antigo apresentam uma importância crucial, pois elas são elementos decisivos para a compreensão do fenômeno fundamental que marca a sociedade da Antigüidade Tardia: a expansão da religião cristã no âmbito da bacia do mar Mediterrâneo, em outras palavras, o processo de cristianização que atinge toda a estrutura social do Baixo Império Romano.

 

Momento este em que a Igreja cristã vai se apresentar ao mundo romano corrompido como a única capaz de oferecer direção àquela sociedade e capaz de socorre-la na decadência. Houve também, naquele momento, uma política de favorecimento ao cristianismo e a  conversão de Roma, fatores esses que contribuíram para a sua implantação. A partir do Édito de Milão em 313 o cristianismo torna-se religião permitida. Isto foi possível por causa da conversão do Imperador Constantino que oferecia à nova religiosidade, apoio estatal. O cristianismo subiu ao trono com Constantino.

 

Como o cristianismo vinha oferecer respostas a esta nova religiosidade da sociedade, facilmente se expandiu, conquistando mais e mais adeptos.

 

No início os imperadores não pretendiam regular a fé e aceitavam a doutrina da Igreja. Como a Igreja não estava suficientemente organizada, recorria ao governo civil e isto lhe dava um ar de subordinação e dependência. O imperador quase sempre intervinha. A igreja servia-se da força do Império.[5] Com a decadência do poder temporal, o poder espiritual passa a ganhar espaço e a Igreja se torna cada vez mais organizada como Instituição passando a respirar ares de superioridade e independência. De um lado a sociedade civil em decadência, de outro, a sociedade religiosa em ascensão.

 

Do século V ao século VIII a Igreja se revestiu de crescente domínio e sofreu poucas e não muito significativas pressões ou questionamentos. Nestes séculos foi conquistando prestígio e foi acumulando considerável patrimônio, graças a doações de senhores e reis  (BONI, 1996:93). Porém, do século IX em diante sofre um processo de autoritarismo, com posturas dogmáticas e agia procurando obstruir as pesquisas e a livre investigação. Provocou desta forma oposições seríssimas e para manter-se agiu com rigor inclusive valendo-se do SANTO OFÍCIO para resolver as questões.

 

A Igreja hegemônica desta época, não se caracterizava assim nem pela pobreza, nem pela humildade e muito menos pela caridade e tinha como apoio “um braço secular”             ( representado pela nobreza) e isto dificultava qualquer tipo de contraposição a ela.

 

 Apesar disto havia os que se propunham a apontar os erros e desvios da Igreja do seu objetivo central na “espiritualização”do ser humano. Estes, que se contrapunham, principalmente a partir dos séculos XI e XII ( segundo BOFF a partir do século IV e V)[6] começaram a manifestar-se.À medida em que estas manifestações foram ficando mais explícitas, a Igreja, para não perder o controle e o poder iniciou uma acirrada perseguição. Na verdade era uma tentativa de se manter a sociedade feudal e não permitir a implantação da nova sociedade – a burguesa – que neste momento já respirava ares de revolução. Podemos perceber que esta tensão dura até praticamente o século XVIII quando de fato a sociedade burguesa se instaura.

 

Os que se contrapunham eram chamados de hereges ( do grego hairesis e do latim haeresis que significa doutrina contrária ao que foi difundido pela Igreja em matéria de fé. Em grego hairetikis  que significa “o que escolhe” – NOVINSKY, 1982:10). Os hereges eram perseguidos pelos inquisidores, principalmente por duvidar da virgindade de Maria, por considerar que não havia pecado na fornicação, por negarem a existência do purgatório, por praticarem a feitiçaria, por negarem a cruz, a eucaristia e a missa. O herege era, na verdade, aquele que quebrava um juramento de fidelidade ou que não aceitava a verdade absoluta da Igreja Apostólica Romana, portanto, tinha que ser punido de alguma forma. A heresia era considerada o pior dos delitos.Na verdade, no decorrer da história, “ser herege”teve conotações bem diferentes.

 

Se o movimento de repressão foi tão intenso  e, mais intenso em alguns momentos e se hoje, ainda se manifesta (de formas diferenciadas) é porque a contraposição representou e ainda representa perigo à estabilidade da forma ideológica hegemônica.[7]

 

A Igreja tinha seu braço secular e se sua ação não estava restrita à Religião, por isso  a questão extrapolava o simples dogmatismo religioso. Qualquer contraposição era considerada perigosa pois representava uma questão também política, portanto uma força desagregadora do mundo cristão e medieval e,  como tal deveria ser dissipada.

 

Apesar de encontrarmos em vários autores as datas de 1229 e 1859 como início e extinção , respectivamente, das Inquisições, existem outras datas anteriores e posteriores que demonstram o engendramento das Inquisições antes e depois da criação do Santo Ofício propriamente dito.Alguns fatos foram decisivos nestas perseguições e na legitimação das Inquisições e considero-os de extrema importância para uma maior compreensão da temática.

 

No século XI dois fatos foram de grande importância: Em 1017, em Orleães, houve um surto de heresia na cidade e o Rei Roberto julgou-os e mandou que os lançassem ao fogo. Em 1045 quando foram descobertos alguns heréticos, as autoridades eclesiásticas recorreram aos legisladores pois ainda não sabiam o que fazer com eles pois não havia Lei para puni-los. Ora eram punidos com clemência , ora com excessivo rigor.

 

No século XII posso referenciar os seguintes fatos: em 1134 São Norberto pronunciou-se contra as Inquisições. Em 1144 na cidade de Lião um grupo de hereges foi salvo pelo clero que convenceu o povo que sua conversão era possível pois o povo queria mata-los. Em 1145, a população de Colônia queimou alguns cátaros[8] . São Bernardo de Clairvaux recriminou a barbaridade do ato, porém elogiou o zelo religioso do povo, enfatizando que a fé deveria ser defendida pela persuasão e não pela violência[9]. Em 1148 o Concílio de Verona instituiu a excomunhão para os heréticos. Em 1154 São Bernardo manifestou-se contra as Inquisições.  A origem das Inquisições como processo de julgamento está no decreto de 1184 , do papa Lúcio III ( em conjunto com o Imperador Frederico Barba Roxa, bispos , prelados e príncipes) ,intitulado Ad Abolendem  , que une o poder eclesiástico e civil que até então haviam agido independentemente um do outro. Não bastava punir, era preciso procurar os hereges. Instituiu-se então a Inquisição Episcopal. Em 1185 Henrique II mandou marcar com ferro vermelho, na testa, os hereges que , deformados, tinham que desfilar pelas ruas. Em 1197, Pedro de Aragão instituiu no Código Civil a condenação dos heréticos através da punição pelo fogo. Em 1198 o papa Inocêncio III cria a comissão dos monges cistercienses para investigar e proceder os heréticos e o papa vai a Midi ( França), pessoalmente, para ajudar os missionários a combater as heresias.

 

Com os decretos papais as Inquisições iam se legitimando. Ora, se Deus dava poder aos papas, como diziam, então era vontade de Deus que os hereges fossem queimados e o mal fosse exterminado entre os homens. Esta era a lógica das Inquisições .

 

  No século XIII, em 1208 execuções em massa foram ordenadas pelo papa Inocêncio III pela Cruzada contra os albigenses. Em 1215, segundo o Concílio de Latrão, os senhores das Terras que protegessem os hereges perderiam seus domínios . O Concílio estipulava também o Método inquisitivo e determinava que todos os judeus usassem um distintivo para que não fossem confundidos com os cristãos ( parece a antecipação da ordem de Hitler como diz NOVINSKY – 1993:23). Em 1219, Domingos de Gusmão, criador da ordem dos dominicanos, organizou uma confraria chamada Milícia de Jesus Cristo e seus membros eram doutrinados e preparados para se lançarem à frente da batalha de preservação da pureza do catolicismo. Em 1220, Frederico II incluiu no Estatuto a pena de morte para os heréticos  e o confisco de bens ( a determinação papal só acontece em 1226), pois tinha interesse particular no mesmo . Os sectários  que não morriam ,deles, deveriam seriam cortadas as línguas. Em 1226 o papa Inocêncio III determina que sejam destruídas casas onde os hereges haviam trabalhado ou se escondido. Só mais tarde, ao invés de destruir os bens, estes passaram a ser confiscados.e em 1231 incluiu-se  na Constituição de Sicília a morte na fogueira. Em 1226 os reis da França, país onde a Inquisição teve mais força, proibiram a entrada de hereges em seu reino.Gregório IX foi quem organizou o Tribunal Inquisitorial em 1229 no Concílio de Toulouse criando oficialmente o Tribunal do Santo Ofício. Em 1232 na bula papal Excommunicamus  se estipulavam alguns procedimentos e confiava-se aos dominicanos a tarefa de  legislar e condenar os heréticos entregando-os ao braço secular da Igreja para serem punidos. Foram escolhidos os dominicanos pois eram seguidores de São Francisco de Assis e, por seus princípios tinham total desapego às coisas materiais e não cometeriam ( pela lógica das Inquisições) crimes por causa da fortuna. . Em 1243 o Concílio Regional de Narbona ( França) promulgou 29 artigos contra os abusos do poder empregado nos processos inquisitórios.  Em 1252 o papa Inocêncio IV autoriza o uso de torturas para obter confissão do acusado.[10]  O acusado que confessasse podia retratar-se submetendo-se a penitências, flagelações, peregrinações e à prisão ( nos casos mais graves). Se persistisse no pecado ou não reconhecesse sua culpa era queimado na fogueira. [11]

 

No século XIV,em 1314, acontece o primeiro auto de Fé[12] em Aragão ( França), seis hereges foram queimados vivos.  Em 1331 o Concílio de Viena determinava que fossem perseguidos todos os que praticassem usura ( cobrança de juros exorbitantes) porque seu dinheiro não vinha do seu trabalho.  Em 1376 surgem necessidades de códigos e regulamentos próprios para o processo inquisitório, pois com o passar dos tempos este, torna-se cada vez mais complexo.

 

Faço aqui um parênteses para apresentar alguns dados contidos num dos mais importantes manuais de inquisidores , o Directoruim Inquisitorum , escrito por Nicolau Eymerich ( em 1376) e Francisco Peña ( em 1578). Para melhor compreende-lo torna-se indispensável a apresentação do Prefácio do mesmo ( publicado em português em 1993) , feito por BOFF onde nos envolve em importantes discussões.

 BOFF discute a prepotência da Igreja em impor a verdade absoluta e não encará-la como ‘busca” e por isto considerar qualquer atitude de não aceitação desta verdade como crime que devia ser punido. A Igreja posicionava-se totalmente intolerante aos divergentes.   Expõe também a lógica da  mentalidade da Igreja e dos inquisidores. Devia-se acreditar que as Inquisições representavam uma atitude sensata , pois era executada para defender a fé religiosa a qualquer preço.

 

  BOFF explica ainda  que a centralidade das Inquisições estava na imposição da verdade absoluta revelada para nossa salvação. A Bíblia e a Tradição da Igreja não podiam ser questionadas uma vez que isso colocaria em dúvida a sua autoridade, portanto todos deviam concordar e repetir os ensinamentos da mesma. Os inquisidores se apresentavam como representantes da autoridade papal. As pessoas eram animadas a delatar. Três tipos de processos podiam acontecer : por acusação, por denúncia, por investigação. Os acusados eram submetidos a todo tipo de pressão para confessar. A confissão era tudo numa Inquisição e as penas eram variáveis.

 

 BOFF afirma que as Inquisições eram possíveis graças à violência interna da Igreja e da distribuição centralizada do poder sagrado, que assumiu o conceito de hierarquia como dominante e a partir do século X dividiu-se entre corpo clerical e laical. Ao clérigos atribuíram origem divina a seu poder e colocaram-se como decisivos para a salvação da humanidade. A característica principal deste processo era o autoritarismo.

 

  BOFF apresenta então os autores do Manual que foram dois dominicanos, um do século XIV e outro do século XVI, peritos em jurisprudência e Teologia – Nicolau Eymerich e Francisco Peña e contextualiza a perseguição aos divergentes já a partir dos séculos IV e V. O Manual foi reeditado em 1578, 1585, 1587, 1595 e 1607 quando o Vaticano o usou para combater o protestantismo ( aliás, Lutero foi um dos que escapou da fogueira) . Nicolau Eymerich( 1320-1399) nasceu em Gerona, dominicano, inquisidor de 1357 a 1392; Francisco Peña, espanhol, reescreveu o Manual no século XVI por causa das novas heresias. Apesar de haver duas inquisições oficiais – a Espanhola e a Romana – o manual passa a ser referência comum para as duas e para todos os inquisidores;

 

BOFF, neste prefácio,  nos provoca não só  a pensar a lógica das Inquisições mas principalmente questiona-la e finaliza o Prefácio duramente:  “A “Santa”Inquisição é um componente neurótico obsessivo do corpo clerical e cristaliza a dimensão de pecado que existe  nas relações internas da Igreja. Pois, a própria Igreja-comunidade-de-fiéis se confessa santa e pecadora. Se assim é, então aqui é o pecado institucional que ganha a cena e a ocupa durante séculos. Seu espírito vaga assustador até os dias de hoje”.  

 

A apresentação do Prefácio de BOFF quase dispensa a apresentação do Manual em si e dá elementos para compreender o próprio sentido das Inquisições até os dias de hoje, remetendo a uma reflexão muito séria quanto à “absoluta verdade”proclamada pela Igreja Apostólica Romana .

 

Vou então, para a apresentação, de forma sucinta, já que o objetivo central não é a análise do manual ( que aqui coloco apenas como exemplificação concreta do que falava anteriormente). O manual se divide em três partes: a jurisdição do Inquisidor, a Prática Inquisitorial e Questões referentes à Prática do Santo Ofício da Inquisição. Na primeira parte os autores definem quem são os hereges, as causas da heresia, nomeiam alguns hereges famosos, tratam sobre os que protegem os hereges e os que se opõem à Inquisição; na segunda parte tratam da posse e do poder do inquisidor, sobre o processo da inquisição ( inclusive os truques para neutralizar os truques dos hereges) e sobre os vários veredictos; na terceira parte trata especificamente sobre o poder do inquisidor ( inclusive em relação ao papa).

 

Quero registrar algumas partes do Manual que caracterizam o detalhamento e a perversidade da intenção de se reprimir qualquer tentativa de oposição. Na parte introdutória ( p 36) define-se exatamente quem devia ser considerado herege:

 

              São heréticos:

a)       Os excomungados;

b)       Os simoníacos;

c)       Quem se opuser à Igreja de Roma e contestar a autoridade que ela recebeu de Deus;

d)       Quem cometer erros na interpretação das Sagradas Escrituras;

e)       Quem criar uma nova seita ou aderir a uma seita já existente;

f)        Quem não aceitar a doutrina Romana no que se refere aos sacramentos;

g)       Quem tiver opinião diferente da Igreja de Roma sobre um ou vários artigos de fé;

h)       Quem duvidar da fé cristã.

 

Observe-se que estas oito situações, se aplicadas em nosso tempo, poderiam nos fazer concluir que vivemos no século da “heresia”ou da “lucidez”ou do”ecletismo esvaziado”de concepções.

 

Na parte onde se detalham as orientações para o procedimento do interrogatório apresenta-se os “dez truques dos hereges para responder sem confessar: responder de forma ambígua, responder acrescentando uma condição, responder invertendo a pergunta; fingir-se de surpreso, mudar as palavras das perguntas, deturpar as palavras, autojustificar-se, fingir uma súbita debilidade física, simular idiotice ou demência e dar ares de santidade.

 

Logo em seguida, apresenta-se “dez truques do inquisidor para neutralizar os truques dos hereges”: desfazer as dúvidas, fingir que já sabe de tudo e que só resta confessar, ler testemunhos para confundir os hereges, faze-lo parecer verdadeiramente culpado, fingir que irá sair e não sabe quando irá voltar, intensificar o interrogatório, não soltar o herege sob fiança, colocar junto ao herege fiéis íntegros que o convençam a confessar, colocar o herege junto a um convertido para convence-lo e não interromper a confissão.

 

Podemos perceber a prepotência do inquisidor sobre o “dito herege” e a inexistência de possibilidade de livrar-se da punição , mesmo se fosse inocente. Há uma pressão psicológica e torturas físicas de tal intensidade que para livrar-se da “tortura” o acusado acabaria confessando até o que não cometera. Logo após a apresentação dos dez truques para se obter a confissão, ainda se registra: “(...) mas a mentira que se prega judicialmente, em benefício do Direito, do bem comum e da razão, é absolutamente louvável”. Tudo era permitido em nome da Fé.

 

Mais surpreendente é o perfil descrito para ser inquisidor ( p 185) : devia ser honesto no seu trabalho, prudente, firme, de erudição católica perfeita, virtuoso, doutor em Teologia, Direito Canônico e Civil, ter pelo manos 40 anos. Com este perfil, facilmente os inquisidores conquistavam o respeito do povo e legitimavam ainda mais as Inquisições, pois a verdade estava intimamente ligada à autoridade.

 

O manual sugeria penas que variavam desde torturas, multas, peregrinações, orações, esmolas, confisco de bens, excomunhão , até a morte[13]. E o manual é concluído garantindo que os inquisidores teriam direito em vida e na hora da morte à “indulgência plenária”. Em nome da fé, da defesa da verdade absoluta, da religião hegemônica estavam os inquisidores autorizados a cometer atrocidades e ainda tinham como prêmio a “vida eterna”.


 

                       

Preciso “respirar no texto”pois, por mais que tente compreender o contexto de tamanha perversidade e que a história explique a heresia até como sinal de renascimento religioso e resultado da opulência da própria Igreja na Idade Média, apesar de tudo isto, é difícil manter o método de investigação ao qual me propus para compreender tal questão, e sucumbo, a cada decreto, a cada bula, a um sentimento de crescente irritação e indignação diante de tamanha monstruosidade.

 

Mas sigamos no desvelamento. A frieza e a certeza de se estar defendendo a “fé religiosa”estimulava os inquisidores  a socializar suas experiências. Os inquisidores eram itinerantes e tinham a prática epistolar para trocar suas experiências. Também foram elaborados, não um, mas vários manuais escritos para ensinar aos novos inquisidores os fundamentos doutrinários e a forma de como se conseguir as confissões.Os inquisidores eram respeitados por causa de sua erudição e comportamento exemplar.[14] Ainda no século XIV, em 1391, dá-se um massacre no qual 4000 judeus foram mortos nas ruas de Sevilha ( entre a conversão e a morte , optavam pela morte pois consideravam a religião cristã uma idolatria).

 

No século XV, na Espanha, o Rei Fernando e a Rainha Isabel ( que subiram ao trono em 1474)  visavam , principalmente, os judeus e muçulmanos e tomavam para si os bens confiscados. Neste século , a Espanha passava por graves crises políticas e econômicas e para desviar a atenção das verdadeiras causas da crise, colocava-se os judeus como responsáveis por usurparem as melhores posições e divulgarem a heresia judaica.  Em 01/11/1478 o papa Sisto IV promulga a bula Exigit sincerae devotionis affectus  através da qual funda a nova Inquisição na Espanha e autoriza os reis a nomear três inquisidores por cidade. Até então só o papa podia faze-lo. Procedia-se a uma cerimônia de nomeação e juramentos dos inquisidores e fazia-se uma missa pública para apresenta-los, na qual as autoridades e o povo deviam fazer um juramento de que iriam apoiá-los. Entre 1441 e 1488, na Espanha, mais de 700 conversos foram queimados vivos e 5000 mil foram presos e sentenciados. Em 1482 o papa Sisto IV promulga regras coibitivas do poder dos inquisidores porque estes cometiam excessos. As admoestações pontificiais de nada adiantaram pois o rei Fernando e a rainha Isabel se opunham à Santa Sé e assim resolveram criar o inquisidor-mor e em 1482 indicaram Tomás de Torquemada, um dos mais perversos inquisidores ( foi designado pelo papa Sisto IV para moderar o zelo dos inquisidores espanhóis ). Com a nomeação de Tomás de Torquemada as Inquisições adquirem força total e este passa a ser referência para os inquisidores dos séculos posteriores.

 

Tomás nasceu em Torquemada no ano de 1420. Religioso dominicano, exerceu o cargo de Prior do Convento de Santa Cruz, em Segóvia por 22 anos. A mesma austeridade que tinha consigo teve com seus semelhantes nos procedimentos judiciários. Em 1484 redigiu, para uso dos Inquisidores uma Instrução onde propunha normas para os processos inquisitoriais. A perversidade de Torquemada foi levada à Sé em Roma para que o papa o destituísse mas em consideração à corte da Espanha o papa não o fez. O que fez foi diminuir seu poderio, colocando ao seu lado quatro assessores munidos de iguais faculdades. Para muitos, Torquemada ficou sendo a própria personificação da intolerância religiosa, homem de mãos sanguinolentas. Outros autores consideram não a perversidade de Torquemada mas o explicam apontando seu zelo religioso.

 

Em 1483 estabelece-se também o Tribunal de Aragão, Catalunha e Valência. Em 1485 o inquisidor Pedro de Arbués ( da Espanha) é assassinado pelos conjurados.  O povo se revolta com os fatos e esquarteja os assassinos. O inquisidor vira mártir e as inquisições ganham força. Em 1495 Dom Manuel casava-se com Isabel e no contrato nupcial havia uma cláusula que exigia a expulsão dos judeus de Portugal em dez meses. Quando terminou o prazo, D. Manuel ordenou que todos os judeus fossem batizados pela força. Nascia assim os chamados cristãos novos. Conciliou-se assim, os interesses econômicos e religiosos ( salvaram-se as almas e encheram-se os cofres da Coroa).

 

No século XVI, em  1530 o papa Clemente VII, conferiu aos Inquisidores a faculdade de absolver a heresia e a apostasia. (negação dos ensinamentos dos apóstolos). Em 1536 pela bula papal Cum ad nihil magis são nomeados três bispos ( de Lamego, de Coimbra e de Ceuta) como inquisidores gerais de Portugal, instituindo-se o Santo Ofício naquele país e retirando-se o segredo do processo inquisitório( isto aconteceu porque o rei de Portugal D. João III ofereceu ao papa uma enorme fortuna – NOVINSKY, 1982: 35). Em 1540 o papa Paulo III cria a Congregação da Inquisição Romana ou Santo Ofício .[15] No dia 20/12 do mesmo ano realiza-se o primeiro auto de fé em Portugal (Lisboa).  Em 1542 a igreja passa a combater o que chama de “surto do protestantismo”. Em 1544 o papa manda suspender a atividade do Tribunal do Santo Ofício em Portugal. Entre 1545 e 1563 pelo Concílio de Trento, o movimento de Contra Reforma reafirma dogmas da Igreja Católica, exigindo maior disciplina do clero e proibindo a venda de indulgências, comércio de simonias [16] e institui o INDEX. Em 16/07/1547 pela bula Meditatio cordis o papa reestabelece a Inquisição em Portugal.

 

Apesar de em 1517, no Concílio de Latrão se ter decretado que a impressão de livros deveria ser aprovada pelo Bispo local, só em 1543 e 1547 divulga-se o primeiro Índice dos Livros Proibidos ( Index Librorum Prohibitorum). O INDEX era uma relação oficial de livros, periodicamente atualizada, que trazia as obras que eram proibidas aos católicos. E todo católico deveria obedecer cegamente a esta proibição. O objetivo era impedir o contato com idéias que afloravam no século XVI, impedir os avanços científicos e a popularização do saber.

 

Poderia citar como vítimas da Inquisição,em vários séculos,  incluídos no INDEX: Nicolau Copérnico   ( 1473-1543) [17] , Galileu Galilei ( 1564-1642),[18] Giordano Bruno           ( 1548-1600)[19] – vítima fatal da Inquisição, Miguel Servet ( 1511-1553) e Michelangelo Buonarroti ( 1475-1564)[20], Gil Vicente, Camões, Sá de Miranda, Bernardim Ribeiro também tiveram suas obras mutiladas e censuradas. Descartes e Locke tiveram suas obras proibidas.

 

Os livros proibidos eram queimados nos autos de fé e seus autores, muitas vezes, sentenciados à morte ou ao confisco de bens. A leitura da Bíblia, por exemplo, em linguagem corrente era proibida. O povo, na maioria analfabeto, deveria aceitar a interpretação do clero. As gráficas, as livrarias, os navios que chegavam aos portos, as bibliotecas ( particulares ou não) eram fiscalizadas. Porém, na clandestinidade, viajantes, mercadores e contrabandistas introduziam as obras proibidas.

 

Quando nos deparamos com obras do século XVI e de séculos até posteriores, podemos perceber nas páginas iniciais a observação “nihil obstat” que significa que a obra está aprovada. Exemplo disto é a obra de Antonil ( jesuíta) “Cultura e opulência do Brasil”, escrita em 1710. O INDEX só foi extinto em 1965 pelo papa Paulo VI ( 1963-1978).

 

Posso ir percebendo quantos foram os instrumentos dos quais a Igreja Católica lançou mão para manter sua hegemonia”: a catequização, o controle, a perseguição e a destruição. Os que eram convencidos pela palavra não sofriam com as torturas ou com a morte.

 

No século XVIII o rei Carlos III ( da Espanha) , de 1759 a 1788 proibiu que se cumprisse qualquer ordem vinda de Roma sem que o Conselho de Castela aprovasse.

 

No século XIX, em  04/12/1808 o imperador Napoleão aboliu a Inquisição Espanhola e o rei Fernando VII a restaurou em 1814 a fim de punir os colaboradores de Napoleão. Em 1820 há a extinção definitiva da Inquisição Espanhola.  Em 1848 o papa Pio IX ( 1846-1878) determina através de uma bula a destruição imediata de todos os instrumentos de tortura.. Em 1859 o mesmo Papa extingue definitivamente o Santo Ofício.

 

Ao concluir, provisoriamente esta breve pesquisa, assolam-me sentimentos diversos: do espírito de análise histórica e dialética porque esforço-me em compreender as Inquisições como resultado da opulência da própria Igreja Católica e como sinal de renascimento religioso e de indignação ( que não quero perder mesmo olhando para o passado, porque seus galhos estão no presente) por não compreender como, em nome do tal “cristianismo” cometeram-se tantas perversidades e “ não compreender”, igualmente, a existência de um Deus inerte diante deste processo e de susto ao perceber o “espírito”da inquisição presente em nosso tempo.

 

Quando me refiro ao espírito das Inquisições quero apontar justamente para o papel de controle sobre os homens, impondo-lhes penas, caso não haja aceitação.Hoje, não temos um igreja hegemônica, apesar da força do Vaticano        ( tão bem estruturado material e ideologicamente), temos religiões impregnadas do “ideário liberal”impondo aos sujeitos um sentimento de conformismo e de autoresponsabilização. Se, em séculos passados, a Igreja usou as vias de força e da palavra para arrastar seus fiéis, hoje, com o “poder da mídia”fica muito mais fácil priorizar a via da palavra.

 

A Igreja tornou-se fábrica de inúmeros garotos- propaganda ( como Padre Marcelo, Padre Zeca, Pastor RR Soares e outros) que aliaram-se aos monopólios da comunicação ( tal como no século passado à nobreza) para impor a ideologia necessária para manter os homens subjugados ao sistema capitalista. Tornou-se também, dona dos maiores centros educacionais, que representam igualmente instrumentos de “adestramento humano”.

 

Diria então, para concluir, que os interesses religiosos não puderam e não podem escapar dos interesses temporais que condicionam as ações humanas e que somos coletivamente responsáveis pelo engendramento da sociedade!!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

BIBLIOGRAFIA

 

BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições. Portugal. Espanha e Itália. Séc. XV a XIX . São Paulo: Companhia das Letras, 2000

BONI, Luiz Alberto De. A Idade Média: Ética e política. 2a. edição, Porto Alegre: EDIPCRS: 1996;

CAROS AMIGOS, 1997, julho , no. 4

EYMERICH, Nicolau; PEÑA, Francisco de La. Manual dos Inquisidores. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1993;

FALBEL, Nachman. Heresias medievais. São Paulo: Editora Perspectiva, 1999;

FERNANDES, Neusa. A Inquisição em Minas Gerais no século XVIII. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2000

HERCULANO, Alexandre . História da origem e estabelecimento da Inquisição em Portugal II. São Paulo: Publicações Europa-América

HERCULANO, Alexandre . História da origem e estabelecimento da Inquisição em Portugal III.. São Paulo: Publicações Europa-América

NOVINSKY, Anita Waingort. A inquisição. São Paulo: Editora Brasiliense, 1982;

OLIVEIRA, Terezinha. O Estado da sociedade religiosa no século V ( François Guizot).Apontamentos/UEM (jan/1992). Maringá: EDUEM, 1992

ROIO, José Luiz Del. A Igreja medieval. São Paulo: Editora Ática, 1997;



[1] Mestranda em Fundamentos da Educação/2001 na Universidade Estadual de Maringá

[2] Juan Antonio Llorente diz que foram 340 mil vítimas, Ricardo Garcia Cárcel diz que foram 150 mil e NOVINSKY ( 1993:69) apresenta dados mais detalhados.

[3] Esta questão é apresentada pela professora Terezinha Oliveira em “O Estado da Sociedade Religiosa no século V ( FRANÇOIS GUIZOT)” – APONTAMENTOS, 1992:2

[4] Ver Boni, 1996:25

[5] Idem à nota de rodapé 3

[6] EYMERICH, 1993, p 13

[7] NOVINSKY (1993:12) considera que a face mais cruel e desumana da repressão esteve no século XX com o surgimento do NAZISMO.

[8] cathari – puro; seita que dizia que o mundo espiritual foi criado por um Deus bom e que o mundo material foi criado por um Deus mau

[9] Ver FALBEL, 1999, p 15

[10] Ver algumas delas no anexo I

[11] Os crimes contra a fé eram considerados  mais graves que aqueles contra os costumes e a moral

[12] Os autos de fé podiam ser públicos ou particulares. Os autos de fé públicos eram verdadeiras festas populares, geralmente feita para celebrar o casamento de um nobre ou uma visita ilustre e para a comemoração se procedia a julgamentos de hereges. Os autos de fé eram luxuosos e muito caros pois eram realizados com muita pompa. Duravam 1 ou mais dias. Compareciam aos autos toda a corte, os visitantes, o rei e o povo, Iniciava-se com procissão seguida de missa e sermão. O sermão geralmente era feito para inflar o ódio do povo contra os hereges que seriam julgados. Procedia-se então ao julgamento. Após a sentença os hereges eram entregues à justiça secular para que se cumprisse a sentença ( NOVINSKY, 1993: 66-70)

[13] Os procedimentos da Inquisição iniciavam-se por uma denúncia ( anônima ou não). O funcionário da Inquisição ia até a casa do acusado. Tudo o que tinha era tomado. Sua casa era trancada ou queimada, mesmo antes de se provar sua culpa. A família ficava na rua. O acusado não sabia quem o acusava e nem do que era acusado. Além de confessar , o acusado deveria apresentar outros culpados. Os que não morriam no cárcere, ou enlouqueciam, ou eram torturados, ou condenados à morte. Antes de serem torturados, eram examinados por um médico que dizia até onde poderiam agüentar. Às vezes a pena era usar o “sambenito”( roupa de cor variada) que identificava os hereges e assim, nas ruas, sofriam zombarias e eram apedrejados até pelas crianças. Ninguém poderia falar com ele, nem a família. (NOVINSKY, 1993:56-66)

[14] Ver FALBEL, 1999, p 18

[15] ..que hoje existe como Congregação para a Doutrina da Fé ( a partir de 1965) e segundo BOFF, atordoa os teólogos da inquisição . Em entrevista concedida em julho de 97 à Revista Caros Amigos, Leonardo Boff, ex padre franciscano, teólogo, explicita uma “Inquisição”em pleno século XX da qual fora vítima (1984) relatando em detalhes o que aconteceu. Nesta mesma entrevista aponta não só a Inquisição, como instrumento eficaz para a manutenção da Igreja Católica mas também a companhia de Jesus ( fundada em 1534) que atuou em três frentes: educação, catequese e contenção/combate à ideologia protestante. Apesar de discutir a questão da “imposição da verdade absoluta”, BOFF também não se propõe a discutir o enriquecimento da Igreja através dos processos inquisitórios. A condenação de BOFF foi ficar um ano sem poder falar ou escrever sobre as questões que levantara. Se vivesse em outro século, com certeza, seria queimado vivo.

[16] Fala-se em simonia quando se comercializam, de alguma forma os sacramentos ou o sagrado em geral.

[17] Sua obra  De revolutionibus orbim coelestium só foi removida do Index em 1822

[18] Galileu foi vítima da Inquisição no século XVII e só sobreviveu porque renegou suas conclusões.

[19] No filme “Giordano Bruno”(uma produção italiana) podemos perceber os elementos inqusitórios.

[20] Sua obra Juízo Final que está ca Capela Sistina ( Vaticano) ainda não pode ser vista como o artista a concebeu.

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